Friday 21 March 2014

conversas de hoje em dia


: das árvores e dos homens :


IL GRIDO
notas espontâneas 
[que bom que é quando um filme dá vontade de escrever]

Um Antonioni inicial em que pressinto determinados aspectos que superficialmente me poderiam afastar um pouco à partida – a música, por muito linda que fosse, em vez de me emergir na história, teve precisamente o efeito contrário: não conseguia parar de notar como a minha interpretação estava a ser persistentemente conduzida e sentia a necessidade de um espaço de silêncio, um espaço para respirar, para absorver toda a imensidão devastadora dos acontecimentos (a música, para meu desgosto, desatava-me o nó na garganta). 

Mas algo ultrapassa quaisquer pormenores superficiais. Aquele homem, um invólucro de pessoa, uma casca ao vento que se arrasta, sujo e cansado. Como uma árvore. Como todas as árvores que preenchem o filme. As pessoas misturam-se com essa paisagem campestre em destruição, ela própria uma casca do que era, um resto em desaparecimento. Fantasmas do que eram. Aldo é como uma dessas árvores frágeis e despidas – ele bamboleia, ele arrasta-se, ouve-se os seus ossos estalarem da mesma forma que as árvores se abanam ao vento. E ultimamente cai (aquele abalar antes da queda, como Aldo se parece com a árvore que a meio do filme é puxada das suas raízes para o chão, por cordas que puxam e puxam pelas mãos dos homens.) Mas já no início, na cena sublime da conversa com Irma, no seu desespero, Aldo agarra bruscamente em Irma, até a câmara treme, o solo é instável, duas árvores inclinam-se uma sobre outra, prestes a cairem, derrubadas pela profunda dor de Aldo que tenta arrastar Irma consigo até ao chão. 

O que me fere é essa parecença. Essa naturalidade, essa humanidade que tenta resistir perante a imensidão consumidora da destruição – o amor que se desgasta e os espaços que perdem árvores e ganham aeroportos. Mas que tenta resistir, tenta e tenta, por muito frágil que seja. Mas pouco e por pouco tempo.

 Espíritos destruídos e não somos mais do que pedaços de terra, galhos secos com rachas da passagem do tempo, do frio, da chuva e que rangem ao som do vento. 

Ou como o Antonioni sabia mais da humanidade do que nós todos. Santo Antonioni.