Sunday 29 May 2011

Pourquoi Midnight in Paris?

A antestreia no MoMA, concebida para provocar rumores eufóricos em relação à nova comédia de 42 milhões de euros do estúdio, terminou e as luzes acenderam-se, revelando uma plateia de 400 pessoas, tensa, com os olhos fechados, a fazer lembrar como deve ter sido quando os forasteiros chegaram pela primeira vez a Jonestown. Enquanto os fazedores de opinião recuperavam e se encaminhavam de forma baralhada para as saídas, dei de caras com Philo Cubbage, um tolo que conheci à margem do show business. Após a habitual troca de comentários fingidos sobre nenhum de nós ter envelhecido, concordámos em mastigar um lombo de vaca e dissecar descontraidamente o filme que tínhamos visto.

"O que tens andado a fazer?", perguntei.

"Acabei agora mesmo uma produção de ''A Longa Jornada para a Noite'' num rinque de gelo", explicou ele, cravando um bocado de carne semelhante a mármore. "E tu?"

"Vou rodar um filme em Paris", disse.

"Nada mau", respondeu com surpresa. "Avec qui? Em termos de estrelas."

"Bem, até agora contactei Owen Wilson, Rachel McAdams, Marion Cotillard, até a Carla Bruni."

"A espremedora-mor do Sarkozy", animou-se. "Isso é que é lançar os dados. Provavelmente ela pode ajudar-te com as autorizações de estacionamento. Qual é a premissa do filme?"

"A verdade é que ainda estou a tentar estruturar a história", contei-lhe.

"Claro que estás. Aquilo que Paris me sugere é uma história de amor, cheia de quadros, imagens do Sena, champanhe. Graças a Deus que tenho uma ideia infalível para te vender. Eu chamava-lhe ''Midnight in Paris''."

"Título romântico", tive de admitir. "Existe um guião?"

"Na verdade, não está ainda nada escrito, mas posso cuspir-te os pontos principais", disse ele, enfiando os seus sapatos de sapateado.

"Fica para outra vez", respondi, consciente da série interminável de Hiroximas teatrais de Cubbage.

"Owen Wilson interpreta Bud Hartoonian", começou de modo destemido, "um talentoso escritor de canções cujas melodias sensuais e letras sofisticadas dizem muito a uma geração de especialistas americanos mas que tem uma vida amorosa repleta de holocaustos emocionais. Quando o vemos pela primeira vez, está a dirigir-se para casa à noite vindo do Folies Bergeres. A sua intenção inicial era ter ido ao Louvre para ver alguns nus de Reubens, mas achou que aqueles que se encontram no Folies Bergeres seriam bem mais divertidos. Ao passar por um caixote do lixo repara numa fotografia numa velha moldura. É uma imagem do rosto de Rachel McAdams e apaixona-se de imediato, jurando encontrar a mulher e casar com ela, ou pelo menos tirar dali a fotografia e vender a moldura. Nesse momento, escutamos o som do Big Ben a dar a meia-noite."

"O Big Ben fica em Londres", interrompi.

"Numa noite calma, o som atravessa o canal", continuou inabalável Cubbage.

"De repente, uma mulher corre para ele com um pacote pequeno.

"''Tem de ajudar-me'', diz ela. ''Eles estão a perseguir-me.''

"''Quem?'', pergunta Hartoonian, fervilhante de adrenalina.

"''Não importa'', exclama ela. ''Fique com este pacote e guarde-o com a sua vida. Se alguma coisa me acontecer, deve levá--lo a Monsieur Laval na Rua Bonaparte.''

"''Mas o que está dentro dele?'', pergunta o nosso protagonista, e aqui a câmara move-se fixando-se num plano muito fechado da face da mulher.

"''A orelha de Van Gogh'', responde ela.

"''O quê?'', exclama ele incrédulo. A propósito, esta dama com o chupa-chupa exótico poderia facilmente ser Marion Cotillard. Nesse momento, um carro arranca e ouve-se um tiro, que a mata."

"É um papel minúsculo para uma estrela como Marion", afirmei, começando a perceber vagamente a dimensão da psicose de Cubbage.

"Acredita em mim, a Cotillard fará qualquer coisa para trabalhar contigo. És um ícone em França - tal como os caracóis."

Agora, Cubbage tinha-se entusiasmado com o seu tema e nada o conseguiria parar. "OK", disse ele. "Owen Wilson pega na orelha e começa a correr. Apanha um táxi e vai para a Rua Bonaparte."

"Mas quem é Laval? E porque quer ele a orelha de Van Gogh?", perguntei.

"Porque tem a outra", explicou Cubbage.

"Mas Van Gogh apenas cortou uma orelha", contrapus.

"Quem disse? Nunca ninguém soube o que sucedeu à outra orelha. A primeira a ser arrancada teve toda a atenção. Quem diz que Van Gogh, que em todo o caso era doido varrido, não cortou o seu outro apêndice auricular."

"Mas porquê?", perguntei mais alto, com a minha voz a subir de tom uma oitava.

"Porquê? Quem sabe? Talvez outra tipa lhe tivesse dado com os pés. Talvez tivesse sido descuidado a barbear-se. Talvez ele fosse um fanático da simetria."

"E Laval?", questionei. "Ainda não o explicaste."

"Laval anda à procura da orelha de Van Gogh há muitos anos. Seguiu-a desde Istambul, passando pela China e o Rio (de Janeiro). Uma vez pensou tê-la encontrado, mas na verdade era a orelha de um tipo chamado Sheldon Finkle, oriundo de Great Neck. A propósito, Rachel McAdams é a filha de Laval. Isso dá a Hartoonian um motivo para a encontrar quando ele aparece com a orelha desaparecida."

"E porque precisa Laval das duas orelhas?", perguntei, levantando-me lentamente.

"Porque as orelhas apenas são valiosas em conjunto. Quem raio precisa de uma orelha só?"

Não consegui encontrar uma resposta enquanto tirava a minha carteira do bolso.

"Claro que há algumas pontas soltas", admitiu Cubbage. "Como por exemplo quem matou a Marion Cotillard. Ainda não descobri ninguém que pudesse querer matar uma senhora simpática como ela - ou quem é exactamente ela na história."

"Não funciona, Philo", disse eu. "Simplesmente não vai resultar."

"Mas porquê?", perguntou ele, abatido.

"A ideia tem originalidade", admiti, procurando uma maneira de adoçar a rejeição. "Mas não há nela um papel para a Carla Bruni. E nós temos um acordo."

"Claro que há um papel para ela", respondeu, os seus olhos a faiscar de divina loucura como Mahdi. "Ela encontra--se com Alfred Dreyfus na altura em que este está preso. Ela está na cela ao lado. Eles são um par de prisioneiros erradamente condenados. Apaixonam-se e isto dá a Bud Hartoonian uma ideia para uma canção: ''I''m a Real Devil on Devil''s Island With You.'' (Sou um verdadeiro demónio contigo na Ilha do Diabo.)"

Nesta altura, deixei uma nota de 100 dólares (70 euros) na mesa para cobrir a despesa com todo aquele saboroso colesterol e dirigi-me para a Broadway. Embora o enredo de Cubbage fosse um bocado frouxo, mesmo assim enviei-lhe uma garrafa de Don Perignon pelo simpático título.

Minnelli & Lautrec

An American in Paris (1951), Vincent Minnelli

Chocolat dancing in Bar Darchille